quarta-feira

Ilha de Moçambique-Moçambique

Quando Vasco da Gama e os primeiros navegadores portugueses ali chegaram, em

1498, era senhor da ilha um sheik árabe, de nome «Mussa Ben Mbiki» ou «Mussal A'l Bik», que acabaria por ver o seu nome atribuído à ilha colocada sob a dependência do vice-rei da Índia. Os portugueses fixaram-se na ilha de Moçambique, em 1507,
que viria a dar o nome a toda uma província ultramarina, da qual foi capital de Moçambique até 1898. Já na segunda metade deste século, ganhou a sua independência, dando origem a um novo país africano de expressão portuguesa.
Fortaleza de S. Sebastião A Ilha de Moçambique é um marco histórico de 500 anos de presença portuguesa, mas a influência islâmica está bem mais enraizada na vida quotidiana dos moçambicanos que a habitam (a população é, maioritariamente muçulmana), nos seus usos e costumes, no chamamento ao fim da tarde para as mesquitas e, até, no velame triangular dos barcos que sulcam as suas águas.
Infelizmente, a Ilha de Moçambique encontra-se muito degradada e sobrepovoada, com cerca de dez mil pessoas a viver em condições precárias no antigo «musseque». À entrada da Fortaleza de S. Sebastião, o guia improvisado começa por mostrar-nos
a maqueta semi-destruída do monumento indicando as principais dependências daquela que foi uma das praças fortes portuguesas do Índico, a partir de 1583. Conservada pelos portugueses até à data da independência de Moçambique, a fortaleza transformou-se numa verdadeira ruína, situação que se agravou com a passagem de um ciclone, há quatro anos.

Fortaleza de S. Sebastião O mato cresce por todo o lado, algumas salas e paredes ameaçam ruir e os canhões das muralhas jazem caídos e abandonados. Outros acumulam-se numa pilha de ferro velho, junto com os carris e as vagonetes de transporte de munições.
Apenas uma das cisternas de água potável se encontra operacional e
são muitas as mulheres que ali se deslocam para lavar a roupa de toda a família.
A capela de Nossa Senhora do Baluarte, construída em 1522 e considerada o edifício colonial mais antigo de toda a costa do Índico, foi restaurada em 1996 com fundos da Comissão Nacional para os Descobrimentos, mas é uma gota de água na imensa fortaleza e em toda a Ilha de Moçambique. Dignos de restauro foram, ainda o Hospital Real de S. João de Deus, o Palácio de S. Paulo (onde, hoje, está aberto o museu) e a Igreja da Senhora da Saúde.
Capela de Nossa Senhora do Baluarte Apesar do estado avançado de degradação do património histórico da Ilha de Moçambique, as maiores carências situam-se no plano da assistência médica, sobretudo pela falta de um hospital e de uma equipa médica em permanência.
Também, a ponte de 3,5 quilómetros que liga a ilha ao continente carece de obras de reparação, tendo já sido interdita à circulação de camiões. As escolas que funcionam na ilha encontram-se, igualmente, degradadas, com destaque para a escola primária, onde não resta uma janela em boas condições. A outrora célebre Rua dos Arcos é um fantasma do passado.
A grande maioria dos estabelecimentos está encerrada, muitos ameaçam ruir e os poucos comerciantes ainda em actividade sobrevivem da venda de alguns bens essenciais à população pobre que habita a ilha. São, na sua maioria, pescadores, que todos os dias se fazem ao mar em frágeis pirogas ou barcos de madeira com as ancestrais velas triangulares herdadas dos marinheiros árabes («dhow» ou «dau», consoante a língua predominante).
As garoupas, sargos, peixe espada, polvos e outros peixes e crustáceos são vendidos para o continente ou constituem a base da alimentação da família.
A população da Ilha de Moçambique é constituída maioritariamente por pescadores Outros, dedicam-se à apanha das curiosas «missangas do mar». Reza a lenda que os portugueses afundaram um barco árabe carregado de missangas que passava ao largo da fortaleza. Missangas essas que as ondas do mar trazem incessantemente para a praia e que os míudos apanham na maré baixa para fazer colares e pulseiras.

Depois da abertura do porto de Nacala, em 1970, a Ilha de Moçambique perdeu a sua importância estratégica e comercial. A ausência de um cais de desembarque para navios de grande calado obrigava ao transbordo de todas as mercadorias para pequenos batelões que acostavam no pequeno pontão, hoje completamente em ruínas. Este é, ainda hoje, um dos seus maiores «handicaps», que a impede de acolher os inúmeros cruzeiros turísticos que, anualmente, molham âncora naquelas paragens, mas se vêem obrigados a seguir viagem para outro porto de abrigo.
No apogeu da sua actividade portuária e comercial, havia trabalho para toda a gente. Hoje, sem comércio, sem indústria e sem «machambas» para cultivar, os naturais da ilha viram-se para o mar, enquanto sonham com os turistas que, um dia, desembarcarão. Há três restaurantes (Café Âncora d' Ouro, o Bar Escondidinho e o Restaurante das Piscinas), mas a única pousada existente está, presentemente, fechada. O melhor contacto para os visitantes é a Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique (AMOZ), que poderá providenciar um alojamento conveniente.
RESISTINDO À CORROSÃO DO TEMPO
É noite na ilha. Mal desponta, no céu, uma claridade tímida que deixa adivinhar o volume impressivo das muralhas do Forte de S. Sebastião, mas não as raízes vorazes que as estrangulam com uma paciência de séculos. À volta do forte apenas se ouve o ténue murmúrio das ondas apaziguadas sobre a areia, enquanto uma brisa cálida vem soprando, hesitante, do coração do Índico, acariciando os restos da pérgula que espera os prometidos dias de restauro.
Ao bonançoso recanto, e à linha litorânea que se prolonga em jeito de fazer uma meia-lua, se deu o maior crédito, cinco séculos atrás, por plurais razões. “A pequena e quase insignificante Ilha de Moçambique seria de muito pouca, ou de nenhuma importância (...) se não fosse enriquecida duma espaçosa enseada e um porto, que é, sem contradição, o melhor, o mais seguro e mais cómodo, que se acha em toda esta dilatada costa”, cronicou Frei Bartolomeu dos Mártires, logo acrescentando que “os navios são obrigados a passar muito perto, e quase junto à fortaleza de S. Sebastião, que pela sua bem escolhida posição local na entrada, e boca do porto, o põem a coberto de qualquer insulto hostil”.
O valor estratégico daquelas paragens foi intuído pelos navegadores portugueses, que por ali se quedaram algumas semanas, esperando melhores ventos para prosseguir viagem. A ilha tornar-se-ia, a partir de então, escala obrigatória para a famosa carreira das Índias, “a maior e a mais árdua de todas as que se conhecem no mundo”, tal como a definia C. R. Boxer, estudioso do colonialismo português. A estância representava, sobretudo, um compasso de espera imprescindível para lidar com o regime das monções, trazendo os cascos das naus que entravam no porto memória de todas as águas do Índico. “A qual povoação de Moçambique tomou tanta posse de nós, que em nome é hoje a mais nomeada escala de todo o mundo, e por frequentação a maior que têm os Portugueses”, escrevia João de Barros em 1552. E também Camões, que na ilha viveu, provavelmente entre 1567 e 1569, se refere a tão importante préstimo: “Esta ilha pequena, que habitamos, / É em toda esta terra certa escala / De todos os que as ondas navegamos...”.

UM SINCRETISMO DE SÉCULOS
Álvaro Velho o conta: as coisas não foram fáceis para os recém-chegados. Os árabes já por ali andavam há muito, descendo a costa africana desde a Arábia e dando fundação a numerosas feitorias. Na narrativa de Álvaro Velho sobre os primeiros encontros das naus de Vasco da Gama com as populações locais dá-se bem conta da riqueza do comércio local: “E, nas almadias, achámos muitos panos de algodão, finos; e ceiras de palma; e uma talha, vidrada, de manteiga; e redomas de vidraça, com águas; e livros, de sua lei; e um cofre, com meadas de algodão”.

Na primordial troca de palavras, para se saber quem estava e ao que iam os que chegavam, o interlocutor local era um natural do reino de Fez, o que revela a variedade de gentes, predicado da terra. E bárbaros não eram, certamente, a avaliar pelos registos do diário de Vasco da Gama: “Os homens desta terra (...) falam como mouros; e as suas vestiduras são de panos de linho e de algodão, muito delgados, e de muitas cores, de listras, e são ricos e lavrados. E todos trazem toucas na cabeça, com vivos de seda lavrados com fio de oiro”. O capitão da nau S. Gabriel pôde constatar logo ali a dimensão do comércio que os antecedia, espelhada na carga dos quatro navios árabes ancorados: oiro, prata, tecidos, cravo, pimenta, gengibre, pérolas e outras pedras preciosas”. A descrição de um missionário da Companhia de Jesus, lavrada um pouco mais tarde é, também, capital, para descortinar o panorama social do sítio: “A maior dificuldade é dar notícia desta gente, assim no número como na qualidade, que habita esta ilha, porque quando íamos desembarcando, vi tanta diversidade nas praias (...), tanta diversidade nas modas...”.
E a todo esse mosaico de gentes e feições de viver se acrescentou a contribuição portuguesa, que levou a ilha a um apogeu de prosperidade, dela fazendo ponto de partida para a exploração do Monomotapa, elegendo-a entreposto para o comércio de panos, missangas, ouro, escravos, marfim e pau-preto, para a deixar cair, depois, em cintilante decadência que guarda múltiplos sinais de uma síntese que resiste à corrosão do tempo. Essa contribuição representa, no dizer de Alexandre Lobato, historiador e afeiçoado da ilha, a contracorrente de uma visão nacionalista e epopeica da aventura expansionista, um “sincretismo de séculos, feito com as vidas dos simples, dos comuns, dos idealistas, e também com as dos vagabundos, dos miseráveis, dos aventureiros e dos náufragos, que com os mercadores ricos de roubos, os clérigos sátrapas de pecados e os nobres déspotas de poder, andaram a espalhar Portugal por toda a parte e de qualquer maneira, amando, servindo, sofrendo, guerreando e roubando - ladrões de almas, ladrões no mar, ladrões na terra - homens, afinal, todos”.

A CAPELA SOLITÁRIA DA ILHA DE MOÇAMBIQUE

Ao amanhecer, solta-se dos rochedos, nos flancos da fortaleza, uma frágil e esguia canoa que se atira em direcção à rosácea luz do oriente, que se ergue para lá da Ilha de Goa. O pescador acena de longe, porventura estranhando o viajante que madruga. As muralhas vão ganhando figura e cor com a aurora, e com elas a capela de Nossa Senhora do Baluarte, exemplar celebração do manuelino em terra moçambicana.

É um templo quase secreto, que os versos de Rui Knopfli evocam em apurada filigrana: “Erecta e incólume ao desafio áspero do vento e da areia, / de tudo e
todos oculta, menos do mar, breve / milagre alvinitente à flor da rocha em espuma, / se te fita, o sol deslumbra e resvala pelas linhas / puríssimas do teu rosto...”. Erguida sobre um baluarte solitário uma vintena de anos depois da primeira passagem das naus (a fortaleza só seria construída quarenta anos mais tarde), a capela devia assemelhar-se a uma sentinela audaciosa e parecer um insolente desafio aos olhos dos árabes. Foi a primeira de uma série de edificações que fazem hoje parte de um núcleo classificado pela UNESCO como Património da Humanidade e que têm vindo a ser objecto de restauro
Tudo quanto fica aqui escrito é acanhado face ao lugar, e tem o gosto, como disse Luís Carlos Patraquim, outro poeta moçambicano tomado pelo feitiço da Ilha, de um “acidulado último gomo das retóricas inúteis”. Limitado o verbo, por natureza,
para certos cometimentos, é preciso lá ir, senti-la e mergulhar na sua carne intemporal. Porque, sobretudo, “... não é da Europa que se vê a dimensão humana e histórica do Portugal que sempre emigrou, pela miséria do Reino e as extorsões dos grandes, tendo como objectivo as miragens ultramarinas como remédios mágicos, a procurar nas Áfricas, nas Índias, nos Brasis”. Palavras de Alexandre Lobato no prefácio a A Ilha de Próspero, belíssimo livro de fotografias e versos de Rui Knopfli sobre a ilha que deu nome a um país.

DUM TEMPO ANTIGO QUE AQUI FICOU

Vale a pena fazer o périplo da ilha a pé, começando na ponta onde estão o forte e
a antiga pousada, convertida em hotel de estrelas. Nos últimos anos tem sido restaurado algum do património edificado da ilha, quer por iniciativa de particulares, que projectam novos alojamentos a pensar no desenvolvimento do turismo cultural, quer da cooperação europeia, quer, ainda, da Diocese de Nacala.

É na chamada cidade de pedra, cujo traçado tomou forma no final do século XVIII e no princípio do século XIX, que encontramos algumas das construções mais emblemáticas do tempo da ocupação portuguesa, como a Igreja da Misericórdia (séc. XVI) a antiga Alfândega (séc. XVIII) e o Palácio de São Paulo, uma ampliação do antigo Colégio de S. Francisco Xavier, que acolhe um espantoso acervo de arte indo-portuguesa. O baldaquim da capela ostenta uma mescla de barroco e de
elementos de arte oriental. Na área localizada entre Rua do Arco e a Igreja da Misericórdia podemos observar significativos exemplos de arquitectura colonial: casas térreas, sobrados e alguns palácios ou feitorias.

No outro extremo da baía virada a este está a Igreja de Santo António, de raiz quinhentista, reconstruída a partir da antiga capela do fortim. Também a Capela de S. Francisco Xavier, perto da ponte que faz a ligação ao continente, tem o rosto renovado, assim como a Capela de Nossa Senhora do Baluarte, restaurada já há alguns anos pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Quase metade da ilha ocupa essa cidade em pedra erguida, “de casas brancas dum branco rosa / dum tempo antigo que aqui ficou” (Alberto de Lacerda, poeta ilhéu), cidade de sombras que parecem durar há séculos, reservada e indiferente à vertigem do mundo. Será, talvez, como a viu Knopfli: “Não vem sequer / da tua voz a opressão que cerra / as almas de quantos de ti / se acercam. Não demonstras, / não afirmas, não impões. / Elusiva e discretamente altiva / fala por ti apenas o tempo”.

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